Por ter, segundo o Ministério Público Federal, atendido a um pedido indireto do ex-ministro da Justiça, Tarso Genro, e liberado o ingresso no país da russa Margarita Ivanova para trabalhar sem o visto adequado, o delegado federal Alcyr dos Santos Vidal está sendo acusado por procuradores da República de prevaricação (deixar de fazer ato de ofício). Para não processá-lo, o MPF propõe, de acordo com a lei, o pagamento de R$ 12 mil, a título de pena de prestação pecuniária, ou a prestação de oito horas semanais de serviços à comunidade por seis meses, beneficiando em ambos os casos uma instituição filantrópica.
Os procuradores Fábio Seghese e Marcelo Freire afirmam, na Proposta Transação Penal (Processo 0803231-47.2011.4.02.5101) apresentada à 9ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro, que a atitude do delegado feriu a Lei dos Estrangeiros que determina que o ingresso para prestação de serviço no país deve ser feito com visto próprio — o Visto Temporário VITM V, conhecido como Visto de trabalho. No passaporte da passageira russa constava o Visto Temporário VITM II, destinado a quem vem ao país fazer negócios.
A própria estrangeira, ao desembarcar do vôo AF 0442 vindo de Paris no Aeroporto Internacional do Rio Tom Jobim, por volta das 4h de 29 de março de 2010, informou aos policiais de plantão no Terminal de Passageiros 1 (TPS1) que "a razão de seu ingresso em território nacional se prendia à prestação de serviços, durante três meses, em uma fábrica de sapatos em Novo Hamburgo (RS)", como consta do documento enviado à Justiça pelo MPF.
Citando o livro Comentários ao Estatuto do Estrangeiro e Opção de Nacionalidade, coordenado por Vladimir Passos de Freitas, os procuradores lembram que "o visto de negócios é concedido ao estrangeiro que venha ao Brasil com o intuito de participar de reuniões, conferências, feiras, para manter conversação com potenciais clientes, pesquisa de mercado e atividades afins. Possui, assim, um objetivo comercial. O estrangeiro em viagem de negócios vem ao Brasil exclusivamente para defesa dos interesses de sua empregadora, com o objetivo de explorar o mercado brasileiro, visitar clientes, travar relações comerciais, não podendo ser remunerado por nenhuma fonte brasileira".
Já o Visto de Trabalho é mais difícil de ser obtido. Ele depende de prévia autorização de órgãos do governo brasileiro como a Coordenação-Geral de Imigração do Ministério do Trabalho e o Ministério das Relações Exteriores, uma forma do governo tentar preservar o mercado de trabalho para os trabalhadores brasileiros, assim como garantir a observância do princípio da reciprocidade nas relações com outros países.
A diferença do visto foi percebida pelos agentes da Polícia Federal de plantão no aeroporto naquela madrugada, levando-os a impedirem o ingresso da passageira russa no país. Ela seria encaminhada de volta no primeiro voo com destino à Rússia. Tal fato é usual e ocorreu com o jornalista brasileiro Solly Boussidan, detido pelos policiais russos em janeiro deste ano, lá na Rússia, quando ele, com o visto de turista, decidiu fazer a cobertura jornalística do atentado terrorista ao aeroporto de Domodedovo. Foi preso por não ter o visto de trabalho e deportado depois de seis dias na prisão.
No caso de Margarita Ivanova, depois de os policiais decidirem pelo seu retorno ao país de origem, a recusa do ingresso no país chegou ao conhecimento de Genro, que havia deixado o Ministério da Justiça para concorrer ao seu atual cargo de governador do Rio Grande do Sul.
Na investigação não fica claro como o ex-ministro soube do caso nem tampouco seu interesse no desembarque da russa, mas o fato é que ele interferiu a favor dela, como narram os procuradores no documento apresentado à 9ª Vara Federal Criminal do Rio: "Na crença de que teriam ocorrido problemas de comunicação com a passageira por ocasião de sua entrevista, atribuídos a uma hipotética dificuldade de a mesma se fazer compreender pelo agente de imigração responsável, o então ex-ministro da Justiça Tarso Genro entrou em contato telefônico com o DPF Luiz Pontel De Souza, diretor-executivo do Departamento de Polícia Federal, relatando-lhe haver chegado a seu conhecimento as dificuldades que supunha estivessem ocorrendo no desembarque".
Pontel ligou para o então superintendente da Polícia Federal no Rio, delegado Angelo Fernandes Gioia, pedindo que verificasse o caso. Este imediatamente acionou Vidal, diretor da Delegacia do Aeroporto, pedindo-lhe para "se inteirar dos fatos, avaliar e deliberar" da forma que "entendesse mais adequada ao caso em tela", conforme consta das explicações dadas por Gioia aos procuradores e por eles transcrita na Proposta Transação Penal.
Na tarde daquele dia, Vidal não estava no Aeroporto. Foi pelo telefone que determinou aos agentes policiais "o desembarque da passageira, em razão da simpatia e credibilidade depositadas em seu superior, o DPF Luiz Pontel de Souza", como descreve o documento do MPF ao juízo. A determinação do delegado aos agentes de Polícia Federal foi registrada com o número 1387 no Livro de Ocorrências da delegacia no Terminal 1 do aeroporto.
O fato de uma empresa de calçados de Novo Hamburgo (RS) ter formalizado tempos depois, junto ao Itamaraty e ao Ministério do Trabalho, o pedido de regularização do Visto de Trabalho para Margarita demonstra, no entendimento dos procuradores, que não houve nenhum problema de comunicação entre ela e os policiais no dia do seu desembarque.
Oficialmente, Genro, Pontel e Gioia não transgrediram a lei na medida em que seus pedidos foram no sentido de que se verificasse o que estava ocorrendo, como apurado pelo Ministério Público Federal. Já Vidal, notificado a prestar esclarecimento aos procuradores, não compareceu, apenas exerceu o direito de retirar cópia integral dos autos.
Na segunda-feira (2/5), falando à ConJur, Vidal explicou que tomou conhecimento extraoficialmente do caso e aguardará ser citado para se manifestar sobre o mérito da acusação. Explicou, porém, que ao ser intimado a comparecer à Procuradoria, num prazo bastante exíguo — "menos de uma semana" — antes de decidir, encaminhou a intimação pelo superintendente do DPF no Rio, à Corregedoria da instituição, que concluiu não ser obrigatório o atendimento da mesma. "Eu não disse que não iria, mas não sei se ia fazer diferença eu ter ido. Prefiro aguardar ser intimado". Segundo garante, "não tenho preocupação nenhuma com isto. Trata-se do entendimento deles (procuradores), agora vou aguardar".
O crime de prevaricação é considerado infração de menor potencial ofensivo, pois sua pena ( de três meses a um ano de detenção) é inferior aos dois anos previsto na Lei 9.099 que criou os Juizados Especiais e autorizou a troca das penas privativas de liberdade por restritivas de direito, como está sendo proposto pelo Ministério Público Federal. O valor para o pagamento da pena pecuniária — R$ 12 mil — foi estipulado por ser "quantia equivalente ao subsídio mensal em média percebido por autoridade policial da classe funcional do autor do fato".
Fonte: www.conjur.com.br